Estava eu por aqui naquela minha máxima de reservar ao tempo, o ócio. Sobre a pequena e remendada mesa de vime em tranças repousava desde a noite anterior a taça de vinho vazia, o livro de história de Nelson Werneck e as cartográficas do matemático português Pedro Reinel; próximo, também, as cumpridas folhas de papel de carta em vergê coloridas, e a caneta. O convite ao papo, palavreado e falatório, o vinho ainda na cabeça. Vamos conversa então, fidalgo Cabral:
- Senhor Pedro Cabral, capitão-mor, garboso navegador português, aportado nessas terras no ano dos mil e quinhentos, venho do túnel do tempo, no rascunho rápido deste papel de carta, te contar, saber e provocar, de brinquedo e à vera ... Pois, pois, homem do tempo, o capitão Nicolau Coelho me fez chegar as tuas cartas, esquisitas, como as tuas letras em garranchos ainda piores do que os meus, de palavras estranhas e curiosas; aqui na nau, já avistamos terra, um certo monte, a quem chamaremos de Pascoal, é semana da Pascoa, e convém inclusive uma missa no próximo domingo.
– Senhor fidalgo, das coisas de hoje, posso lhe adiantar que Fernão Magalhães estava certo, a terra é redonda. E sim, mudamos muito, nossas convicções, nossas crises, novas formas de odiar, de guerrear, distrações, principalmente, mudaram; mais distraídos do que nunca, ficamos mais informados e mais tolos, e toscos, com novos medos, esquizofrênicos (palavra moderna, que certamente não conheces o senhor, e talvez o seja); ainda meio perdidos, sem nos resolvermos na paz, na felicidade ou no amor, porém festeiros como nunca, em outras ondas que não só as da Baia de Todos os Santos que, sei, já conheces, ondas de satélite, que nos levam e nos trazem em rápidos toques, a todos os mares e lugares, o senhor iria adorar. ... Então, gajo, por aqui me foi confiada a missão de tomar para El Rei (como são os reis do seu tempo?) aquilo que se espera de quem é dono e senhor escolhido do Altíssimo, fazer a posse, ainda que na força, coisa de que sabemos bem fazer; ontem já rezamos a missa, havíamos nós, filhos de Deus, e também teve bicho parecido com gente, bichos tolos, esquisitos, que se animam com qualquer coisa reluzente e brilho, um presente, um espelho, como inocentes e exóticos, mas animais sem alma, que precisam do Senhor Pai. Daremo-lhes a salvação, do alto do Altar e da nossa bondade europeia.
- Me perguntas pelos reis deste meu tempo; te digo que os do seu tempo continuam, adaptados, mas ainda frívolos, canalhas e ambiciosos, alguns recebem a alcunha de “Presidente”, outros de “Primeiro-Ministro” etc, mas todos muito bem envelhecidos e de família, de rastreio nobre, tão sedentos de seguidores quanto mentirosos; e o que se chama hoje de povo, parte dele segue em bando, meio cego e meio tonto, tipo gado, travestidos. Ah, mas te apresento um outro tipo de “Rei”, que são feitos de materiais eletrônicos e fibras minúsculas, de coisas que vossa senhoria não conheces, mas tão infames e adorados quanto os reis de carne e osso, contudo mais sutis e poderosos, porque também reis não só dos meus desejos, mas dos meus sonhos, coisa de enebriados, ... Compreendo, jovem do futuro, e não me surpreendo, neste meu tempo já não éramos só súditos de algum Dom João ou Luís, mas especialmente do brilho que cega, do ouro, da prata ou do diamante, destas coisas que muito queremos mas que nos amedrontam. E vossa mercê me fale do que tens medo e entristece?
- Senhor Pedro, a melancolia existe sim, e dificilmente deixará de estar, vem no desalento, na coisa sutil e graciosa da solidão, a solidão das noites em novas formas de viagens e embarcações, das milhares de informações que nos lançam, que mais confundem e afastam do que aproximam e salvam, feito barco perdido, sem mar, sem pôr-do-sol ... Rapaz do futuro, digo-lhe uma coisa, todos nós esperamos dos outros um pouco de afeição, admiração, mas fazemos para isso quase nada, seja no seu tempo ou no meu, temos a eterna mania de querermos ser o centro, o apontado na beleza, na inteligência ou no poder, a vaidade. Falarão os poetas que todo derradeiro apreço e devoção só nos virá dos cães ou das estrelas de maior brilho, porque fies e sublimes, inclusive como nós dificilmente conseguimos ser.
- Por fim, senhor navegante português, alerto-vos que não se confunda e vanglorie de sua grande obra e empreitada, e avise disso ao El Rei, pois na Terra Brasillis deixarão mais do ruim do que do bom, daquilo que nós, do futuro, lamentamos uma melhor sorte. Tomo banho ainda no mesmo Atlântico Sul, cenário de crimes, que vocês teimaram em manchar com o mesmo vermelho-sangue que os seus emprestam até hoje ao orgulho da vossa bandeira, e disso, senhor, nada mais melancólico.
E carta na garrafa, mar, correio.
Francisco Gutemberg, ser humano, irmão, amigo, brincalhão, escritor, poeta, feliz, o que pensa por si mesmo, forte.
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