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Uma crônica de domingo

Quando se fala sobre coisas do nosso tempo

12/12/2022 às 21h18 Atualizada em 12/03/2023 às 18h03
Por: Redação I Fonte: Francisco Gutemberg
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Uma crônica de domingo

Para o caso de terem a paciência de me lerem, neste mês de festas, que passa rápido, fiz uma crônica de final de semana, de final de tarde, de final de ano, de janela de ônibus e de shopping. 

Vamos brincar de passear, de flanêr.

Desci. Preferi não pedir taxi. Ônibus. Algo diferente. Nem o Sandero e nem o Uber. O domingo em Salvador chovia. Chuva de verão, fina, fria, rápida. Da janela do buzú, procurei um pedaço do céu que estivesse sem nuvens, não achei. Peguei o chiclete no bolso do casaco flanela, azul. Me veio a lembrança rápida do meu “walkman” Sony, anos 80, Praça da Sé X Campo Grande, jens velho, faculdade, sardas, sonhos, Legião, Letras etc.  Rápidas lembranças. Nostalgias que combinam com o que refresca lá fora. Um certo dia, em uma de minhas aulas de Redação, no Colégio Militar, o aluno Gilberto me pergunto “professor, por que o senhor está pedindo para irmos lá fora olhar o céu? O que tem a ver o céu com a nossa escrita?” Respondi que observar o distante, o aberto e alto nos ensina o embelezamento da vida, acostuma o olhar à ambição da curva, do infinito, da busca, nos capacita a questionamentos mais vulgares e profundos. O ônibus parou no último ponto da Paralela. Uma idosa levantou-se sofrivelmente, pediu o ponto. A cara do motorista arriscou uma careta. Ela se arrastou e desceu. Expliquei aos alunos que estar constantemente entre quatro paredes nos limita em possibilidades interpretativas sobre a vida, sobre nossas relações com o outro e com o mundo. Naquele dia os alunos estavam contentes, gostavam de aulas fora da sala; o céu estava todo azul, belo e claro. Hoje, pingos pela janela entreaberta, no respingo em meu braço. O motorista tem pressa. Já vejo o neon das letras garrafais no nome do shopping. O ônibus veio quase vazio. As pessoas simples, com suas roupas de domingo, as deixarei ali, anônimas seguirão, nos seus mais diversos trajetos, com as feições mais suaves, que não são vistas em dias de trabalho, no corre corre da semana. Uns descem, outros sobem. interessante que ninguém diz assim “até logo, pessoas! Bom ter estado com vocês aqui! Até mais e um ótimo dia a vocês”. Minha vez, desci. As ruas de Lauro e São Cristovam estavam mais tranquilas. Calçadas molhadas, lavando o cansaço da semana que passou, guardando a velocidade dos carros. É bom ver a cidade menos movimentada de vez em quando. O Salvador Norte Shopping é como todos os shoppings são, do lado de fora fachadas largas, imponentes estruturas, Janelões, muito vidro, e a elegância nas logos de seus nomes. Tudo no projeto de atrair os nossos olhinhos trêmulos e vibrantes no gostoso convite a beleza, ao conforto, à perda de tempo, à compra ... 

Porta automática. Mais luzes. O ar-condicionado. Lojas. Ah, as lojas! Várias, vendendo de tudo, em seus belíssimos letreiros iluminados (a luz e suas variedades e tons são uma das marcas da estética identitária dos shoppings. Os estudiosos da coisa certamente já descobriram algum processo químico-físico-biológico que nos afeta por conta do tipo e intensidade da luz. Interessante!). Lembro a primeira vez que entrei em um shopping, década de noventa, Shopping Iguatemi; era o “point” da época; passeio, lanche, encontros, paqueras; não havia celular nem zap; cheio de adolescentes, cheios de energia, mais espertos e ousados que os de hoje. Mas, voltemos a dezembro de 22, ao domingo, aos olhares fingidos alegres dos vendedores às portas das lojas, na espreita, na torcida. Dos vendedores, depois volto a falar mais, destes seres esquisitos, porque agora um senhor engravatado flutuando em sua patinete futurística quase me derruba. Você já reparou nos “seguranças” dos shoppings ? Eles ficam de lá para cá, sobre aquelas rodinhas, sem norte nem sul definidos, observando o perfeito funcionamento de algum roteiro, vendo se algo descaminha, não olham pras pessoas, parecem sempre estarem indo a lugar nenhum; são os que não estão nem para a venda e nem para a compra; nunca vi um deles sorrindo (será que é proibido?). As lojas são o centro de atratividade, para onde os olhos correm; suas vitrines cuidadosamente ordenadas, ao gosto da moda e do cliente, e na proposta da sedução, da venda, me chamam... Entrei numa dessas de roupas masculinas; escolhi uma calça tipo “slim”, observei, encostei na cintura,... a vendedora se aproximou e disse “ficaria ótima em você,... você é esbelto, vá no provador, experimente!”; Não sou tão velho, lá se vão meus quase 50 anos, mas já tenho idade para ser pai da mocinha vendedora; desisti. Outro dia, me chamaram na coordenação do colégio para que um pai me falasse sobre meu trabalho; um homem, de meia idade, meio sisudo e com olhar cauteloso, veio reclamar-me, na verdade, dizendo-me que eu parasse de exigir da filha dele, minha aluna há três anos, coisa absurda como ter de me tratar por “senhor”. Pensei, pensei, algum dia farei uma crônica só sobre o professor, esse ser tão estupido, deplorável e tosco, que a sociedade teima em maltratá-lo e, mesmo assim, por alguma razão soberana e inexplicável, insiste na labuta!...  

Aproveitar para retomar a figura do vendedor; trabalho duríssimo; quase 10 horas por dia, em pé o tempo todo, uma hora para almoço e descanso, roupa sempre bem passada, cabelo bem alinhado no gel, clientes e chefes insuportáveis, sorriso grudado no rosto, fingindo estar bem e feliz; são seres interessantes, de uma frieza bruta e dolorosa, triste, passam muitas vezes despercebidos pelos clientes, pelo mundo;  o vendedor não tem o azul do céu nem a pista da rua para alguma fuga ou divagação; seus concorrentes são seus amigos e inimigos; sua alegria: a boa venda, o ir embora mais cedo, algum descanso ou passeio... são seres singulares, regulares, mas tipicamente modernos naquilo que representam a agonia do desencontro consigo, com o repouso e com o outro ... A menina da loja de joias tem o castanho claro dos meus olhos, todavia um traço desalegre do olhar.

Parei na praça de alimentação; numa mesa para dois, sentei-me, empurrei-me para trás na cadeira, fiquei confortável, cruzei as pernas, mão no queixo, pensamentos; olhei o ir e vir frenético das pessoas, já não são os adolescentes que dominam; daqui vejo o cinema (uma pequena fila), uma livraria (praticamente vazia), loja de perfume (essa, sim, cheia) e um espaço infantil (crianças no alvoroço da gritaria); uma senhora meio gordinha senta à minha frente, me percebe, muda de lado, senta outra vez, morde vagarosamente o sanduiche enorme da Burger King, reflete, pisca, olha se eu estou olhando, desfaço; mais a frente, dois adolescentes, uma menina e um menino, uns 13 anos, dão uma olhada geral no lugar, a menina corre os dedos sobre a mão do garoto, namoro, param, olham de novo, corre uma mão novamente, rostos vermelhos, um gole de suco pra esfriar... Minhas batatas também esfriam, estou sem fome, observando,... Na frente da perfumaria há um senhor, uns 70 anos, talvez mais; ele não tira as mãos dos bolsos, olha a vitrine quase encostando os enormes óculos no vidro da loja, depois se afasta, mas continua na espreita, no que acontece lá dentro; vira-se, segue pra cá; li outro dia que só 20% dos idosos associam a velhice a uma fase ruim da vida; pergunto-me “o que acharei quando chegar a minha vez?”; ele veio sentar-se bem próximo a mim, na mesa do lado; olhou-me, deu-me bom dia, retribuí; a moça gordinha, bonita, levantou-se, seguiu em contraste à velocidade dos demais, lentamente, com queixo baixo, olhar distante, um trocado pelos pensamentos dela... Meu vizinho de mesa, aqui, parado, pensando o que fazer agora que sentou; observei-o por algum tempo; puxou do bolso da camisa quadriculada uma fotografia, antiga, em branco e preto, meio manchada pelo tempo, mulher, do bolso da calça veio uma folha de papel lilás e, olhando a foto, dedos trêmulos, escreveu; do rosto desceu o brilho, diligentioso e breve, que molhou um pequeno ponto do papel; levantei-me cuidadosamente, o suficiente para não ser notado (aliás as pessoas quase não se percebem umas às outras por aqui); saí; já na rua, no sol, a chuva foi, é verão, é assim mesmo, o ônibus chega em 15 minutos; somos estranhos e somos mais, só não sabemos ainda quanto...

 

Francisco Gutemberg, ser humano, irmão, amigo, brincalhão, escritor, poeta, feliz, o que pensa por si  mesmo, forte.

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LucineiHá 2 anos BahiaÉ muito interessante a farma de olhar de Gutemberg. Um olhar referente que nos leva refletir!!
Apolinário Há 2 anos Salvador, Bahia Professor Francisco Gutemberg obrigado pelo estímulo a leitura e contemplação do tempo. Olharei mais cuidadosamente a queda das folhas.
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