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O MENDIGO

Um pouco de ausências e de dores, no que retrate o traço fraco e sem cor dos que não vemos porque não queremos

12/01/2023 às 12h44 Atualizada em 12/03/2023 às 17h58
Por: Redação I Fonte: Francisco Gutemberg
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O MENDIGO

Acho que na outra encarnação eu devo ter sido um mendigo, louco e triste, por alguma razão do destino a qual não se deva culpar nem a Deus nem a ninguém mais. Que gostava de sair pela noite, quando todos dormiam, já tarde, para não assustar ninguém com a minha presença, feiura e deformidade, por medo de não ser novamente maltratado e xingado pelos estranhos, pelos outros loucos do primeiro turno, pela polícia, pela perfeita ordem da cidade e seus transeuntes deseducados, que não gostam de gente suja, com cara de fome e olhos remelentos e tristes. O tapa, o chute, o xingamento ou o desprezo. Ah, o desprezo armado de faca, carrasco maior, atroz, sempre me quis, desde cedo. 

Devo ter morado em algum barraco de alguma favela, destas de alguma grande cidade brasileira, tido um pai violento e ausente e uma mãe muito sofrida, que me criaram a duras penas enquanto puderam, enquanto a metade de um pão e uma caneca de café eram suficientes, enquanto eu não era mais um problema para a própria sobrevivência deles, enquanto as suas vidas não se tornara tão desgraçadas inclusive pelos vários filhos que tinham. Imagino que um certo dia, ainda que minha mãe não de todo o quisesse, resolveram aliviar o sofrimento, decidiram me deixar em algum lugar distante o suficiente para eu não saber retornar, em uma dessas ruas de largas calçadas de bairro nobre, movimentadas, cheias de carro e gente bem vestida, esquisita e suspeita. Em algum lugar próximo àquele antigo viaduto, onde terminei de me criar e me tornei gente, ou quase isso.

É provável que eu tenha chegado bem perto do fim várias vezes, sem a infância, sem brinquedos, sem cor no sorriso, sem a integridade e sem a decência do corpo saudável e do amparo. Outros seres iguais a mim devo ter encontrado na mesma sorte, maltratados no abandono e no desprezo, no ferro, na pedra e no fogo.  Destes, alguns se tornaram meus salvadores, benfeitores, professores, algozes ...

Eu tive três cães vira-latas; todos se chamavam “Chulinho”; foram meus grandes amigos nesta vida; o primeiro morreu atropelado (quase também vou de tristeza), o segundo morreu de frio (ou foi de fome, não descobri) e o último me deixou porque o mataram (não gostava que me batessem).

Era uma destas meninas bonitinhas, cheias de sarda, quase sem cor, sem sol. Nunca soube de mim. Passava sempre no mesmo horário, linda e risonha, indo pra escola com seu namoradinho. Eu o invejava. Invejava a mão dele na dela. O sorriso dela pra ele. Eu a chamava de a menina das tranças doiradas. Não conseguia imaginar nenhum nome que se ajustasse bem para ela, para a sua beleza única,  esplendorosa e salvadora. Era a melhor parte do dia; era quando eu desconfiava que poderia, afinal, existir algo parecido com aquilo que as pessoas chamam de felicidade; era quando nem a fome nem o  ardor das feridas nos pés e joelhos me chamavam; era quando as lágrimas brincavam de brilhar e sorrir no meu rosto. Certa feita a menina das tranças doiradas  não apareceu; me preocupei logo; na terça, ela também não veio; e não veio mais; depois, passou a me visitar em particular, nas lembranças, nos meus sonhos, daquilo que tinha mais saudades ...  

Dos que perdi, meus pais foram os primeiros a quebrarem meu coração, me tirarem do mundo dos filhos, do encanto, dos vivos, das famílias, do carinho e da proteção; e ainda que eu tenha morrido várias vezes depois, aquela foi a morte derradeira, maior, a que sugeriu todas as outras que viriam.

Acho que na outra encarnação eu devo ter sido um mendigo, louco e triste, por alguma razão do destino a qual não se deva culpar nem a Deus e nem a ninguém mais. Não devo ter partido num domingo e nem num feriado, porque os nobres, a beleza e a poesia já reservam esses dias para si; possivelmente, numa segunda-feira de correria me foi dada a passagem, já atrasada e sem alardes, numa esquina destas de alguma grande metrópole, no final da tarde, quando o ar e a rua já fediam. Parti meio às escondidas, não porque me escondi, mas porque ninguém me via; fui assim, meio sem ser, sem ter, sem nada, e só.

 

Francisco Gutemberg, ser humano, irmão, amigo, brincalhão, escritor, poeta, feliz, o que pensa por si  mesmo, forte.

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Jaqueline Há 2 anos Mata de São João Um texto que revela a realidade da vida nus dias atuais
SALATIEL BARROS TAVARESHá 2 anos CamaçariQue belo e triste texto! Parabéns ao autor.
Laionara GonçalvesHá 2 anos Salvador???? ???? ???? excelente reflexão! Essa é a realidade de muitos, infelizmente.
LouraHá 2 anos BahiaCrônica que retrata de forma poética a vida sofrida de muitos dos nossos que são infelizmente excluídos e esquecidos por muitos de nós!!
Amanda Há 2 anos Camaçari Encantada com o texto!
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