O Carnaval é sem dúvidas a grande festa do brasileiro. Ele se prepara o ano inteiro para este momento “mágico” de devaneio e volúpia total. A festa da carne, como também é conhecida, estabelece comportamentos, quebra limites, movimenta a sociedade de maneira única, a corromper o que pode se entender por virtude, naquilo que conclama algum incêndio a diversas bandeiras moralistas que sobrevivem na contemporaneidade, que ainda não tenham se convertido à esculhambação da festa.
Trazido de Portugal, via Ilha da Madeira e Cabo Verde, o Carnaval aporta em terras tupiniquins em 1641, trazendo na bagagem toda a alegria e irreverência típicas da festa. Mas é apenas no Rio de Janeiro de 1840 que ocorre o primeiro baile de salão. Já os primeiros clubes carnavalescos esperariam mais um século para surgirem. Na Bahia, diferentemente do Rio de Janeiro, ganhou força o carnaval de rua, dos afoxés (classe popular, pobres) e dos clubes (das elites). Contudo, a maior invenção do carnaval baiano estaria no aparecimento do Trio Elétrico de Dodô e Osmar, em 1950, algo que consagraria de vez o carnaval popular e de rua.
No caminho de uma possível compreensão de significados que carrega o carnaval da Bahia na atualidade, é importante nos determos na década de 80. Este é um momento histórico para o país, quando ocorrem diversos fatos sócio-politicos de magnitude suficiente para alterar, de forma bastante significativa, as relações de poder, interferindo inclusive no engendramento de uma nova cultura de massa. É o momento da chamada “abertura politica”, da chegada e implementação de uma nova fase do capitalismo, um novo modelo político-econômico (neoliberal) que, orquestrado nos EUA, Japão e Europa, estabeleceria regras não apenas comerciais, mas especialmente comportamentais, articuladas que são ao eterno projeto de manutenção do status quo, de quem domina e apadrinha, de quem com uma mão afaga, com a outra rapa e com os olhos tapeia.
O Carnaval contemporâneo também é resultado de todo este esforço de readaptação do Poder no país, dos finais dos anos 80, da saída mansa, burlesca, chantagista e “amigável” dos militares (com dedinho pra cima, na ponta dos coturninhos cantarolando a bela machinha “anistiados, anistiados!, Viva, viva! ...), aqui também travestido na vertente da festa, do grito inebriado do povo, na latinha da piriguete, ou no background da Nova Schin, a quem a “artista” das belas pernas te convidou à bebedeira no slogam “tome Schin!”, enquanto o seu lobo, bafômetro e a PM não vêm, e o acidente de transito com vítima fatal também, ainda que pese ela (a das belas pernas) ter ganhado muito dinheiro (bote muito nisso) por isso.
O Carnaval é muita coisa, é, por exemplo, aquela frase antiga e batida do reporte de qualquer canal de mídia baiano que só entrevista quem vai dizer o que ele espera: “Carnaval gera empregos, tira o povo da miséria, salva vidas, é santificado ... Não há um só baiano que não goste do carnaval!”. E numa formulação de imagens, de movimentos, cores, néons, tambores, confundidos com uma pretensa “cultura baiana”, que encanta os olhos e os frágeis ouvidos da massa, do homo festivitas e do homo consumus, quer se render e sentar de vez na “boquinha da garrafa”, nem que se “arrombe” todo. E ai daquele que falar mal de minha besta, digo, festa!
Então, para o sucesso do modelo operacional do projeto político-econômico (sim, há quem sustente, poucos, que o carnaval faz parte de um projeto que não é só de festa, cara pálida!) há a necessita de variados recursos que o viabilizem, e, neste sentido, atrelado à idéia de formação do indivíduo (sua pacificação e confecção de opinião), o Carnaval, e todo o seu arcabouço sedutório e intimidador, são ferramentas (armas?) importantíssimas na preservação do sistema de Poder que interessa ao Capitalismo.
Chancelada pelo Estado e adorada pelos veículos de comunicação, ou diria melhor, pelo mando das cinco famílias que detêm o poder da verdade no Brasil (Marinho, Frias, Macedo, Saad e Abravanel) a “Festa” foi concebida para atrair multidões de todos os lugares do Brasil e do mundo, movimentando somas astronômicas que enriquecem empresários do ramo de cervejaria, telefonia, hotelaria, agenciamento turístico, aviação, bem como alguns poucos escolhidos que atendem pelo singelo nome de “artistas” baianos, eleitos a cada ano por algum youtuber ou programa de TV super descolado, na figura de um influencer digital ou um outro expert em cultura e “arte” contemporânea.
Voltemos à festa da carne. Em nome da alegria, da tradição e, principalmente, do lucro, digo, do emprego, atestam os governantes que o Carnaval traz progresso e dividendos, no que se excluem, talvez por um “lapso de memória”, a informação capital de para onde segue o grosso destes dividendos, os sorrisos maiores. Progresso este inclusive bastante perceptível no aumento da renda dos empresários patrocinadores e do número de menores e indigentes catadores de latinha que enfeitam as ruas de Salvador, Recife e Rio de Janeiro a cada fevereiro ou março, todos juntinhos e harmoniosos ao lado e ao som dos belos e enfeitadíssimos trios elétricos.
Rebelar-se contra a falsa unanimidade, insinuar uma pequena insurreição a desfavor do Carnaval, é quase um sacrilégio, diriam o Papa e os discursos de bolso do governador do Rio ou Bahia. Se você não gosta da festa, cale-se! Mude-se, sob pena de parecer louco ou pecador, para algum lugar triste e monótono. É como querer a aventura de dizer que a nossa imprensa, corrompida e cínica, não tem autoridade para afirmar em moral e ética nenhuma questão sócio-politica-econômica, porque bancada que sempre foi pelos que ganham com o flagelo da ignorância das massas, porque migrante aonde chamar as reluzentes moedas de prata e ouro. Do jornalista engravatado, tipo dez de paus como o global William Bonde, bem enfeitado e quase engolido de tanto pó e botox, espera-se sempre a sua estupida e recorrente máxima do jornalismo brasileiro na defesa de seus patrões “Liberdade de expressão” ou “a imprensa é a voz do povo e ele não se cala”. Ou seja, roubam a posição de vítima do desgraçado que lhe ensaie qualquer ameaça, colocando-o no seu devido lugar, no lugar do ostracismo e do ridículo. Viva o Carnaval!, Viva o trio elétrico! Viva as escolas de samba!
Uma festa que emburrece, enquanto imbecializa, arrasta a massa, literalmente, a qual atende ensandecida à demanda e à hipnose, ao sorrateiro chamamento televisivo “ao vivo” do repórter rele no camarim de alguma “deusa” meretriz da música brasileira, naquele já batido e mal perfumado empréstimo de inteligência, na venda do corpo, na sedução chinfrim a quem o hetero e masculino tupiniquim se derrete vulgarmente. Pois é, seguem os carnavalescos no caminho da turba enlouquecida, a qual se envolve de alma e corpo na dança frenética e ridícula, no agitar de braços, pernas e bundas obesas, em manifestações que atendem à insanidade rítmica do trio elétrico, na agressão gratuita à inteligência, à temperança e sexualidade feminina. Assim é o carnaval da Bahia, um grande bordel a céu aberto, legalizado, fedendo a urina e ao mau hálito da galera de Sampa, que esculhamba os nordestinos nas suas redes sociais, mas que todo fevereiro aqui vêm pra beber e mijar. E o que sobrar desta conta deve já ter sido investido na Bolsa de Valores de São Paulo ou quem sabe Nova Iorque, como resultado de lucros justos e honestos de quem acredita na alegria do povo e sua saúde mental.
Mas este ano disseram que será diferente, que não haverá carnaval, que os sete dias serão voltados para uma nova e grande frente de mobilização da sociedade em prol do combate à pobreza no Brasil, quando todos os governos e grandes investidores da festa da carne se reunirão em Brasília, Salvador, Rio e Recife para, em um mega esforço de uma semana, ao invés de enriquecerem e promoverem o idiotismo, combaterem a fome e a miséria; pois não só de barulho, zumbido, pornofonia, pornografia e de belas e caras propagandas de cerveja vive o homem, mas da verdadeira bondade alheia, daquela que se esconde sob a nossa coragem e longe da luz, vista apenas na loucura matinal.
Francisco Gutemberg, ser humano, irmão, amigo, brincalhão, escritor, poeta, feliz, o que pensa por si mesmo, forte.
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