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A chuva de Mariana, ou as praias da antiga Itacaré

De quando nos chegam as lembranças, doces ou amargas, mas constituidoras daquilo que fomos e que ainda está em nós

12/04/2023 às 21h18 Atualizada em 14/04/2023 às 12h58
Por: Redação I Fonte: Francisco Gutemberg
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A chuva de Mariana, ou as praias da antiga Itacaré

Já passava das 17 horas, Augusto sentiu vontade de parar um pouco ali, naquela velha praça, conhecida, dessa vez pra valer, não adiar mais. Sentar-se, sem pressa, Praça da Piedade, no velho e mesmo banco de madeira que dava pra ladeira dos Barris, da Salvador de tempos outros, que respirava e acolhia. Há anos ele vinha se esquivando das memórias. Desde o dia em que Mariana deu-lhe carona da escola até o largo, no seu grande guarda-chuva azul escuro, quando lhe roubou o primeiro beijo, o primeiro suspiro mais forte, tremor derradeiro, e primeiro, o mais longo de todos os arrepios matinais, o mais entorpecedor de todos os calores, anunciadores de todas as paixões que ainda viriam na sua vida.

Recostei-me no mesmo banco. Corria aquele antigo vento, fresquinho, terral, de final de tarde; meus cabelos já não mais cumpridos e claros, meus olhos também, e menos agitados. Já não havia punks adolescentes underground, a galera do breaking se entortando, que desciam do Colégio Central; a moda agora é o pagode, o MC, brega chic, o funk; os camaleões também sumiram, são, agora, os mendigos que se arrastam pelo piso sujo e riscado da praça; nem mesmo os senhores idosos e falantes do dominó, na sua alegria e simpatia entardeceira de concluírem o dia, entre amigos de outras eras e estórias, vemos mais; em seu lugar uma igreja a céu aberto já se formava, trazia homens e mulheres mulatos, exageradamente alinhados, engravatados, com suas enormes bíblias, arrumando as caixas de som e microfone, enquanto crianças igualmente engravatadas e sem sorrirem já distribuíam o panfleto e o convite para logo mais. Ao menos o chafariz ainda existe, insiste na identidade do passado.  Os respingos da fontana (ou era a memória da chuva) fez-me ver Mariana se chegando um pouco mais pra junto de mim, subíamos a ladeira dos Barris, a aula terminou mais cedo, calorzinho gostoso do corpo dela, menino tímido, branco envermelhando-se na alergia do chocolate; ela quase a me sussurrar que viajaria assim que dessem as férias. Era novembro de 1986, e eu, aos 13 anos, ainda nada entendia de despedidas. Sentia o amor pela primeira vez. E foi assim que Mariana deixou-me sem presa, no sorriso triste, numa segunda-feira de sereno e troca de olhares, debaixo do mesmo guarda-chuva, e para sempre, ali no largo, quase em frente à Igreja de São Pedro, sozinho, caminhando meus olhos adolescentes e melancólicos por aí. A chuva de Mariana nunca mais voltou.      

Mais que dia bonito tá hoje! Tá tudo diferente. Os crentes já estão me olhando. Não pensei mais em Mariana. Ela deve tá no meio de alguma multidão qualquer, por aí, São Paulo, Rio, Fortaleza, fora do país, espalhando sua beleza, na formosura do seu traço e forma, e no encanto daqueles olhos meigos e vagos, castanhos escuros e lindos, e meus ... Fiquei na praça, vendo a pressa das pessoas; os ônibus que desciam do Campo Grande para a Sé já não levavam Augusto e o seu okyman sony de fita K7, hoje, o negócio é smartfone.

Outro dia, com um velho amigo, perguntou-me em qual época eu gostaria de ter vivido; pensei, seria a década de 50? (talvez a de 60?). Sempre a romantizei. Imagino-a, ainda, estampada na blusa bonita daquela moça loira, numa festa qualquer do Clube de Engenharia, 1992, em jeans Lee colado, chiclete na boca exageradamente vermelha e linda, descendo as escadas do Clube, com uma foto em preto e branco, um surfista em longbord na blusa. ... Renato dizia em uma de suas músicas “O que não é sonho é imperfeito”. É, não era para eu ter ouvido isto! Aliás, as palavras de Jesus, de Sidarta e as músicas da Legião sempre me disseram primeiro que todo mundo, para o bem e para a dor.

Manhã qualquer de janeiro. Verão de 1952. Pedi que deixassem o café na mesa. Eu havia saído cedo. Ela ficou ali, quieta, com os pés descobertos, quase tocando ao chão. Os cabelos longos e negros escondiam-lhe o frescor do rosto ainda bastante jovem, sardento, belo, em contraste com o fino lençol bordado em cetim verde claro, cheio de flores coloridas; ao largo da praia, imaginei-a acordando vagarosamente, uma tela de Monet sobre a cama, na frescura e verdor da beleza espalhada, ela, o amor. O dia chamando lá fora, queria-me, fui, como sempre, por inteiro, forasteiro contínuo e louco. Segui em direção à velha ponte. Pisando o lixo da noite passada, sobre os passos, as danças de uma possível festa (talvez um luau), fotos amassadas, garrafas de cerveja, restos de comida, um lenço dobrado e manchado em batom vermelho, o envolvente cinza da neblina, o bêbado praguejando lá na frente, um dia qualquer na memória de dois jovens que deixaram a neurastenia  nos velados suspiros de amor .... coisas que só a duas pessoas interessam, e que os anéis de saturno guardam dos demais olhos e imaginações em sua poeira cósmica para sempre.

Sentei-me sozinho nas pedras mais próximas ao mar. Os primeiros surfistas já voavam sobre as ondas, com seus cabelos queimados, suas danças, seus descompromissos, na liberdade azul marinha.

... Lembrei-me, pela penúltima vez. Mariana ... que foi ali ... e demorou, enquanto o tempo não se esquecia de mim e das memórias.

... Eu e você de volta às terras antigas da Bahia; quem sabe, passeando pelo além do Carmo; pensei ter te encontrado novamente, desta feita em ébano e mulher, sorriso mesmo e lindo, e as mesmas mãos e pés pequenos, de linhas minhas e já conhecidas, lá onde sempre estive, no teu destino, nas reencarnações, de ti, sob o lençol verde de cetim, ou nos respingos do chafariz daquela praça, ...

 

 Francisco Gutemberg, Professor e Escritor.

 

 

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JanyraHá 2 anos CamaçariSou suspeita a falar da escrita, do conteúdo sempre bem elaborado que o querido escritor nos presenteia. Este, por exemplo, tem o romantismo, o simbolismo e o realismo muito evidentes. É uma narrativa que descreve em detalhes cada acontecimento e nos remete a um período gostoso de se viver. É um texto narrativo e poético, que desperta a nostalgia. Gostaria de ver mais crônicas assim, com tamanha sensibilidade. Parabéns escritor pela linda obra!
Ruan Há 2 anos Salvador- BAQue leveza na escrita, nos faz viajar junto. Agraciado por poder te ler.
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