- O domingo que amanhece forte lá fora, cinza, pingos na vidraça rachada no azul, turquesa; copo, água, fria, boca; levanto, corpo, aqui, ali, você; perfeição, formosura, lábios, olhos, devaneios, curvas, sono, seios, tudo, eu, seu, você, minha. Banheiro, água, olhos, rosto, redondo, espelho, escova, dentes, pensamentos, ligeiros, chuveiro, corpo, nu; roupas, sapatos, olhos, meus, você, lençóis; xicara, café da Chapada Diamantina com leite e pouco açúcar; porta, corredor, botão, elevador, rua, carro, chave, janela, chuva, retrovisor; movimentos, carros, novos, pensamentos, você.
- O carro que chega à praia, silencio, final de manhã, passos, lentos, vazia a orla que segue até a última sombra; o cabisbaixo mulato vendedor de chapéus de palha caminha só, me diz que o mundo é duro e que a injustiça e a loucura andam sempre aqui por perto; olhos, mãos, minhas, meus, areia, água, frias; o café quente com leite que ficou sobrando sobre a mesinha redonda da cozinha, frio; quente a mulher, formosa sobre a tela, colorida no cetim lilás, bela, sozinha e assim assim, linda linda; caminhada, areia, passos, mar, espumas, salgada, pernas, lembranças, molhadas, aqui, ela, lá; quando crianças todos brincávamos juntos, hoje brincamos de coisas sérias que não são de verdade, são as invenções de bastidores do novo programa de televisão, do grande irmão, do idiota irmão, diria o profeta de Gibran, diria Aldous Huxley; no paletó, na gravata, bem vestido, o rapaz do século passado, perdido no futuro, molhado, nos joelhos e nos pensamentos, nos pingos, no branco, rosto, homem estranho que caminha pela orla; balbucia, pragueja, boca, leve barulho, zumbido, pensa: anjo, além da cama, das nuvens, da minha inspiração de poeta maldito, das minhas intimas neurastenias e do paraíso, onde estás?
- No passeio sem pressa na praia vem, vento, areal, litoral, orquestra que nasce do mar, harmoniosa, junto ao que sopra o vento leste, vem, ele, o rapaz das memórias crepusculares e assaltantes, vadias; a percepção deste homem de meia idade, um tanto louco, sisudo e tolo, carregado de brinquedinhos coloridos nos olhos e no bolso, sem ter a quem dar, sem deste mundo nada mais esperar, na falácia dos ancoras nos jornais da Rede Bobo. Mãos, smart, fones, ouvidos, the rolling stones, música, As Tears Go By, pensamentos, vozes, música de novo, canto, você, aqui, tudo que faz bem à alma e salva deste mundo branco tem o leve montante e custo da volúpia e da loucura derradeira e saborosa, que é pra valer a pena a vida e a ventania minha, o meu melhor frescor. Brinca uma criança na sacada daquele sobrado verde, observando o que observo, o horizonte, o fim, a memória boa, nada ela sabe, nada eu sei; nem tudo precisa ser entendido, relatado, matematicalizado, comprimido, mas sentido, verdadeiramente vivido; o sol já chamou a tarde, me sorri a despedida, já se foi a chuva, indo o dia, assim é a vida, a nossa idade, a translação, a partida e o nascimento, a tua mão apertando a minha, amor da minha vida!
- Todas as influencias que considerei positivas para mim sempre me levaram a ti, amor, àquilo que brilha e faz bem vestir a alma, sentir e pensar pra todo o sempre, escondido nas majestosas colinas azuis de maio, escondido na turquesa dos teus olhos turvos e belos de menina e mulher, numa noite de amor. Será verdade o que disse o menino Neruda: “é tão difícil as pessoas razoáveis perceberem a poesia, quanto os poetas se tornarem razoáveis.”? Toda a minha razoabilidade, fora.
- Retorno ao quadrado, ao mundo sem milagres, dos taciturnos, sem cor, des-sonhado; chaves, carro, transito, garagem, elevador, chaves, porta, cansaço, quarto, interruptor, você, luz dos teus olhos, o amor; eu, roupas, banho, nu, sombra, você, interruptor, cama, beijos, amor.
Francisco Gutemberg: Professor e Escritor.
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